"Posso falar com a sra? que história é essa que o médico vai embora? nós não temos mesmo muita sorte! Ficamos sem médico um tempão (dra Inácia era tão boa mas foi embora) e quando chega um que escuta a gente, não tem pressa em terminar a consulta, que "incaica" a gente todinho, examina direitinho, só passa remédio bom que a gente logo cura... aí vem a notícia que ele vai embora. Com a sra e com esse médico a gente tava garantido, mas agora? como vai ser? nós não podemos ficar assim...temos que fazer alguma coisa, o que essa secretaria tá pensando? esses pensamentos tortos de tirar o médico daqui, num tá certo não." (J.B, 63 anos). Fui abordada no corredor da unidade esta semana, para ouvir esse desabafo de um usuário que está diariamente no serviço para tratar úlceras venosas, que melhoram e pioram o tempo todo. É tão interessante ouvir da comunidade suas impressões e aquilo que para ela tem realmente significado! Na fala deste senhor é nítido o sentimento que coloca em graus de valoração, o profissional que o atende, muito mais no plano humano e do cuidado ético, do fazer com implicação, da atitude acolhedora do que na solução para o seu problema. Sim, porque apesar de ter conseguido ser medicado, visto por angiologista/cirurgião vascular, seu problema continua lá, arrastando-se. Mas percebe-se na fala o acalento e ânimo em saber que quando precisar, o médico vai estar lá. E pode-se até esquecer o quanto de iniquidade há em certas condutas.Tantas vezes consegue-se com tanta dificuldade marcar consultas com os ditos especialistas, para constatar depois que as práticas e condutas seriam as mesmas tomadas na USF. A despeito de qualquer resultado, mesmo considerando que ele, no fim, é o que se busca, precisamos dessa clínica do olhar, do palpar, ver e enxergar não só o corpo, mas essencialmente, "o sujeito que habita o corpo"- a clínica dos afetos, que se despe, em parte, do positivismo e da visão radicalizada no plano cartesiano; a ciência permeada por uma subjetividade que vem do sujeito que ali se põe aberto, frágil e inteiramente disponível para o tratamento dos males que lhe afetam, até mesmo os aspectos mais intrínsecos de sua personalidade, o jeito de ver e pensar as coisas. Ele vem (o sujeito) aberto e exposto ao julgamento do saber técnico, da ciència por excelência. Suas crenças e suas impressões, por vezes, não recebem da clínica, qualquer validade. E ele (mais uma vez, o sujeito), só ele, na maioria das vezes, pode reconhecer em seu corpo físico elementos que para outros são profundos segredos. Não haveria momento melhor para perguntar que importância se vê na figura do médico e na solução concreta deste, aos seus problemas...à sua saúde, mas não foi necessário. Estava ali, escancarado na sua fala, que a importância vem do modo de ser e de agir que, especificamente, esse médico, por quem ele lamentava, imprimiu na relação com o paciente, e sob que bases decidiu pautar a sua forma de cuidar. E é assim que nos deixamos transparecer... permitir aos outros enxergar nossas raridades. O eterno movimento de sermos igual-desigual como nos lembra Carlos Drummond de Andrade:
todas as histórias em quadrinho são iguais.
Todos os filmes norte-americanos são iguais.
Todos os filmes de todos os países são iguais.
Todos os best-sellers são iguais
Todos os campeonatos nacionais e internacionais de futebol são
iguais.
Todos os partidos políticos
são iguais.
Todas as mulheres que andam na moda
são iguais.
Todos os sonetos, gazéis, virelais, sextinas e rondós são iguais
e todos, todos
os poemas em verso livre são enfadonhamente iguais.
Todas as guerras do mundo são iguais.
Todas as fomes são iguais.
Todos os amores, iguais iguais iguais.
Iguais todos os rompimentos.
A morte é igualíssima.
Todas as criações da natureza são iguais.
Todas as acções, cruéis, piedosas ou indiferentes, são iguais.
Contudo, o homem não é igual a nenhum outro homem, bicho ou
[coisa.
Ninguém é igual a ninguém.
Todo o ser humano é um estranho
ímpar.
Carlos Drummond de Andrade, in 'A Paixão Medida'
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