sábado, 28 de setembro de 2013

Maria é ser dom... é ter magia


Maria  traz no corpo a marca de todos os sonhos já desfeitos. Seus sonhos foram transferidos, realinhados para outras existências, para as gerações que lhe perpetuarão, a despeito de todo e qualquer destino que lhe tenha sido reservado.Tem na alma toda a dor das impossibilidades e pelejas, das lutas pela condição inesperada de nem mais andar, de conviver com um diagnóstico inconcluso mas que sente todo o drama da realidade que traz em si. Sua trajetória cheia de feridas quentes que lhe atinge não só a carne, que lhe marca também o desejo de amar e por isso mesmo, experimentar todas as tramas e ardis de quem neste mundo se permite ao amor e por consequência,  a dor pela canalhice e a falta de honradez masculina. Ser deixada de lado pelo seu homem no momento de maior carência física, afetiva,  financeira... quanta ignomínia! E pensar que Maria pudesse desabar, descer ao chão, ao mais profundo onde a tristeza e a solidão pode nos encontrar... É bem verdade que ela chorou. Chorou mais que "Alice" e só não se afogou porque não mudou de tamanho. Pelo contrário, do canto reservado que acomoda e cabe sua invalidez, da mesma lágrima também se fez de novo o riso, a alegria, a gratidão. De posse de sua velha e emendada cadeira de rodas, doada graças à morte, que levou seu antigo dono, tempera com sal e alho suas panelas, sente os respingos quentes que lhe atinge o tronco, e tanto melhor! Se lhe chegam às pernas, queimam-lhe, pois não as sente. Neste momento, não há nenhum vestígio de desamparo. Não há sentido de dó ou pena, é só uma mulher rompendo a barreira da deficiência  cozinhando com plena suficiência para alimentar  todos ao seu redor. Sua esperança encontra esteio e substrato no barulho e algazarra que os seus netos fazem durante todo o dia, sim, porque ela é para eles escapatória  da creche,  e eles para ela, a possibilidade de engendrar um cotidiano familiar, com tarefas domésticas, cuidados e gritarias de crianças, tão comum e tão necessário para não sucumbir à sua própria miséria. E ela tenta não se curvar a nenhuma visão ou previsão pessimista, somente a febre das infecções quando lhe atingem, os calafrios que rompem a barreira de sua paralisia, lembrando-lhe que há um corpo, pelo menos meio corpo, que lhe avisa os sentidos de que é hora de maiores cuidados. É tempo de acionar a equipe de saúde  e alguma terapia extra para que ela possa retomar sua rotina. Maria é a expressão máxima do movimento incessante das contingências das coisas. E contingente para ela é o que muda inesperadamente, imprevisivelmente. Na sua pobreza devoradora há uma compreensão muito maior e não menos bonita de que aquilo do qual  ela mais carece é também o que a faz ser, viver e sentir com uma destinação humana, como um direito a ser conquistado. Seja como for e quanto de si ainda resta inteira, o que Maria quer é ser feliz e manter a "estranha mania de ter fé na vida". A força dela nos serve de alerta e nos remete a transcendência, a superação de tudo quanto, não mais podendo  ser, caia então no plano do desejo. E aí então, no espaço do desejo,  tudo recomeça...