quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Calçadas Amigas: pequeno relato de experiência





O ano era 2005, o mês não lembro agora, mas não importa. Estávamos sentados na calçada. Uma roda de conversa se formava, cada um trazendo um banco ou cadeira para um encontro na rua, numa tarde agradável. Após a acolhida de todos, começou-se o debate e os mais diversos problemas da rua, do bairro e da cidade iam sendo despejados na roda, até que uma senhora revelou algo inesperado: "Tenho vergonha de dizer onde eu moro, porque tem um lixão na entrada da rua e essa referência me deixa envergonhada". Questionou-se então, se mais alguém, que morava na mesma rua também sentia isso. Qual não foi a surpresa, muitos compartilharam do mesmo sentimento, e alguns que não enxergavam aquilo como problema, passaram a olhar a situação com outros olhos. A partir deste momento, tivemos em público uma verdadeira aula de cidadania exposta e carente em encontrar ecos nas suas reivindicações e desejos coletivos e se fez então algo que é a essência do pensamento "paulofreiriano" - a mobilização das pessoas pelo viés da compreensão de que "não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão". Todos falaram, e falaram muito, e teceram idéias, analisaram o fato, suas causas e consequências, de quem seria a responsabilidade, o que poderia ser feito, quem iria fazer, quantos poderiam participar, que ações seriam necessárias para equacionar o problema, quem, verdadeiramente, estaria disposto a se implicar. Formaram-se comissões para cuidar de cada uma das etapas. Convocaram-se os órgãos públicos de interesse, chamou-se para um encontro entes privados donos do terreno na entrada da rua, mostrou-se a reivindicação da comunidade, buscou-se envolver as escolas e outros sujeitos para "engrossar o caldo" da ação, que exigia uma mudança de postura dos moradores na sua relação com o lixo. Fez-se um trabalho de recuperação no local, retirou-se as caçambas de lixo, em caminhada foi-se em cada domicílio da rua para explicar a necessidade de não mais colocar o lixo na esquina e mantê-la livre da poluição.No dia marcado para a transformação, onde antes havia o lixo plantou-se flores, árvores, coqueiros, fez-se teatro e poemas para estimular no cidadão á ética ecológica, aquela que não cabe em si sozinha, não cabe sozinha em ninguém, todos têm que possuí-la, sob o risco de ninguém escapar no fim. Eis um relato da experiência do que são as CALÇADAS AMIGAS, importante ferramenta de utilização para o trabalho de EDUCAÇÃO SANITÁRIA E AMBIENTAL a que se propõe o PESA ( sem maiores pretensões de citar nomes de pessoas ou órgãos - eles existem, mas só são importantes quando citados na pessoa do NÓS). 
E  é impossível encontrar verdade maior que possa ser traduzida nas palavras de Paulo Freire assim por ele pronunciadas: "Se, na verdade, não estou no mundo para simplesmente a ele me adaptar, mas para transformá-lo; se não é possível mudá-lo sem um certo sonho ou projeto de mundo, devo usar toda possibilidade que tenha para não apenas falar de minha utopia, mas participar de práticas com ela coerentes." Então, é desse jeito que o PESA se revela, como programa local num bairro periférico de uma cidade linda, mas que esconde lá (nas bordas dessa cidade), seres desejantes de um mundo melhor, uma vida melhor...uma rua melhor.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

MEU NOME NÃO É CLEIDE, MAS ME CHAMAM CLEIDE


"Estou me sentindo doente, mas vou melhorar. Não preciso de internamento, só preciso que me respeitem. Eu queria que respeitassem o que eu sinto. Eu tomo  banho, eu me alimento, eu tomo meus remédios, eu durmo. Eu vou me curar, se Deus quiser, e ele quer." O que há de errado nesse desejo? Onde está a completa insanidade? Onde está a  necessidade de hospitalização? O chamado urgente para uma visita domiciliar, fez com que parte da equipe de saúde "perdesse" metade do seu tempo para o almoço nesse dia. Fomos ver na expectativa de algo muito sério e muito grave, pois o que se pedia era pungente: "Venham rápido ela precisa de ajuda, a família já não sabe mais o que fazer". E a gente treme na base quando a questão está na ordem da Doença Mental. Há tantas coisas implicadas que afetam o enfrentamento dessa temática! É tão angustiante quando temos que nos debruçar sobre essas patologias.! Afinal, qual o limite e a  responsabilidade da ESF diante desses casos? Como mobilizar saberes, atitudes e práticas que deem conta de amparar todas essas necessidades? E como ignorar que esses são diagnósticos que compõem a terceira morbidade entre o perfil epidemiológico da área? Não é algo que  possa ser deixado de ver. A narrativa do cotidiano de familiares foi o que pareceu mais preocupante. Na tentativa de superação, buscam os profissionais de saúde,  e o encontro é cheio de aflição. Eles bradam a inconformidade com o rompimento, com o isolamento afetivo e social, do sujeito, pelo qual ainda que, aparentemente rude, tem forte ligação parental e afetiva. Todos dizem: "Só queremos o seu bem. Queremos lhe  ver bem. Queremos que você fique boa". E dizem isso exasperadamente. Num tom que beira o precipício. A tensão desses encontros (ou desencontros) revelam uma necessidade enorme de recuperação, não só do paciente. Obriga a equipe a repensar o cuidado com o olhar focado na família. Os familiares precisam de ajuda, e muita! Foi o que vimos. Curiosamente, durante a visita a paciente era o ser mais calmo entre todos ali presentes. Ela e o médico. Ambos ouviram num silêncio quase metafísico os debates nervosos da família, todos dando receitas para a cura, ao mesmo tempo. Um mergulho na turbulência de dúvidas e conflitos. No fundo, não há aceitação fácil para lidar com o drama cotidiano de um doente mental, tanto mais quando a doença, está atingindo muito a esfera orgânica e interferindo no modo de se portar no dia a dia. Sim, porque diante deles está alguém que fala, come, responde, é jovem, não tem doença que exija ficar na cama o dia todo...e o que enxergam é a falta de coragem e ânimo, do não desejo de melhora...É desesperador ouvir tanto julgamento. Evidentemente que as dificuldades, os problemas dessa família, e seus dilemas, exigirão da equipe uma aproximação que a coloca para o centro dessa experiência, não podendo negar a infalibilidade e a necessidade de enxergar para além da doença, a história e a existência de cada um. Não há nada mais humano do que temer ao resultado disso. Nunca mais tinha ouvido nada tão humano quanto o que foi pedido por Cleide. E seus dois únicos sorrisos dirigidos a nós, durante a visita,  atingiram em cheio nossa impotência. Não só eles...nós também vamos precisar muito de ajuda.
De repente uma necessidade de ouvir um blues.

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Tenda do Conto em Cidade Nova: Encontro lindo, cheio de emoção.


E elas chegaram com aquelas malas de rodinhas. Alguém perguntou: vão viajar? Respondi: Sim, vamos todos viajar. Vamos mergulhar numa experiência que tem um encanto assombroso e tira de nós lembranças empanadas...longe na memória... encobertas pelo tempo. Todos foram buscando acomodar-se e impossível foi não perceber os olhos curiosos debruçarem-se sobre os objetos que estavam sendo espalhados sobre a mesa. Na expressão do rosto, todo espanto e curiosidade. Espalharam-se pétalas de buganvileas sob a mesa, malas customizadas de vários tamanhos no chão, penduraram bonecas de pano e urupemas numa colcha de fuxico, toda sorte  de objetos carregados de imensa simbologia e significados no imaginário daqueles inúmeros pares de olhos que curtiam a novidade do encontro naquele dia. Típico encontro com arquétipos. E a cadeira de balanço? Ah! eis aí o objeto mais intrigante. Coberta com uma manta, cheia de almofadas, pronta para balançar a quem se submetesse testar sua  identificação e conquistar a coragem de expor a autonomia pessoal, a própria liberdade interior e acima de tudo a autocompreensão dos seus processos existenciais. A mensagem pronunciada por cada uma das falas revela, o que temos de nós em forma de dor, saudade, prazer ou alegria. Inegável quanto de  desconsolo humano carregamos, tantas vezes anônimo e cotidiano, diante das perdas irreparáveis, ausência de pessoas amadas, da saúde fragilizada, da felicidade que às vezes se faz tão distante, do trabalho que nos sucumbe e que pode ser mais motivo de desamparo em algumas ocasiões. Quem consolará a todas essas intempéries dispersas nas nossas memórias até os dias de hoje?. Trazê-las à tona causa tanta reviravolta interior! Como são preciosas as pessoas quando se aproximam com ternura das suas mais duras vivências! E há um maravilhoso  projeto de amor embutido em cada uma dessas vidas que conseguiram emergir e chegar até aqui, para lembrar que no fim tudo que se viveu de mais doloroso não minimizou o desejo e a esperança de ser feliz. Percorrer o caminho da memória traz de volta a percepção da totalidade e junta a realidade que em nossa história de vida se fez em mil pedaços. E isso é tão bom para percebermos que,  até quando ainda formos nós, seremos sempre o complexo e magnífico testemunho das nossas idéias e sonhos. A Tenda do Conto nos convida a  passar por cima do nosso desamparo pessoal e prestar atenção em quem está do nosso lado, acolher suas lágrimas, suas dores e dissabores; nos estimula a curtir os mesmos sorrisos,  alegrias e lembranças boas; compartilhar no fim, abraços e afetos. Não há nenhuma rigidez ou ordem predestinada, somente ouvir em silêncio, substrato necessário para se consuma do outro aquilo que o milagre da TENDA pode dar.