quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Minha prescrição é o amor



M.F.S, 52 anos. Oito filhos e um marido péssimo que a largou deixando-a com as crianças ainda pequenas. Lutou duramente para criá-los. Transfigurou os ossos em trabalhos que suplantavam sua força física. Crianças maiores viraram adultos da noite para o dia, para dar conta do cuidado das menores. O lar, campo de batalha para superar todas as vicissitudes, fazer o tempo passar, filhos crescer, a dor amadurecer e parar de doer. Não previu que o tempo trás outras dores, às vezes maiores, difíceis de conviver. E no momento em que não é mais possível suportar, porque o desespero age como fera partindo rumo à destruição, há que se tomar decisões, fazer escolhas que ajude a salvar ou abater. Desconstruir reveses. Mas como fazê-lo? Até descobrir caminhos, as lágrimas são companheiras e os regam fartamente. Difícil enxergar qualquer sinal de possibilidade de consolo. E busca-se, ainda que incerto e tímido, o remédio para o medo, traduzido em pílulas. O serviço de saúde fez sua parte - "medicalizou a dor". Pode-se agora comprar o riso e o sono na farmácia do bairro. Pode-se? Sim, é lógico! Temos um sem fim de opções em drágeas que são prescritas todos os dias, para dezenas e milhares de pessoas que não conseguem colocar a vida em pauta para um debate, para o diálogo normalizador que encontre a serenidade, a paz e o conforto emocional. Um desencontro de agendas a fez parar "em minhas mãos". Sim, porque o médico é sempre o mais confiável para dar uma solução. E é buscado de uma forma que se assemelha a um encontro com a fé. Quando a acolhi coloquei o dedo sem dó numa ferida antiga, cujo desfecho foi o derramamento de um mar extenso de lágrimas e histórias tristes e doloridas. Não senti pena. Não é digno. Invadiu-me uma necessidade de deixá-la expor, transbordar tudo o que de mais pungente carregava como herança da dor. Após cessarem as lágrimas partimos para um exercício de contar os dons, o que foi e ainda é bom, o que vale a pena ainda insistir e lutar. Lembrar que "a vida não se perdeu". Recomeçar usando novas tintas, escrevendo outro final, o pretendido. Lembrei-lhe do amor, da possibilidade de outros encontros que deixam a vida com outros tons. Que devolve a alegria e sonho, mesmo quando acordados, por que não? Mas não me surpreendi com a reação de espanto e distanciamento de tal possibilidade. Às vezes precisamos, como Psique, fazer uma profunda viagem ao inferno e conhecer as fiandeiras que nos ensinam que a vida é curta e que precisamos dar atenção ao que mais importa. Ela voltou de lá, reconhecendo, que ela mesma, nunca tinha parado seu processo de formação, reconstrução. Ontem fiquei sabendo que ela arranjou um novo amor, está fazendo academia, sorrindo à toa, e um pouco envergonhada comigo, pois no fundo, ela sabia que eu estava certa. Prescrevo o amor em substituição aos barbitúricos da medicina se o problema com o qual me deparo é a ausência dele. E o amor, esse estopim dourado, ele mora em nós como um guardião e ninguém jamais pode destruí-lo.

domingo, 5 de janeiro de 2014

A generosidade se faz em atos




























A solidão que há em nós não é só medida pela falta do outro. Há tanta solidão no vozerio das ruas, nos corredores da repartição, nas filas onde nos colocamos prostrados e nos sentimos árvores criando raízes, que esquecemos de lembrar dos seres que nunca experimentam uma solidão assim - em meio à multidão. Para alguns a restrição e os limites são mais vorazes. Por acaso, em algum momento da vida, você já se imaginou sem poder andar? Por algum lampejo perceptivo já tentou pensar como é ir de um lado a outro da cidade sem o uso das próprias pernas? Desconfio que não. Não somos assim tão afeitos a nos colocar, ainda que extemporaneamente, na condição do outro; de experimentar ao menos em tese, as vicissitudes de quem não anda. Corremos feito loucos, atirados como lobos na borrasca das nossas urgências de pagar o cartão de crédito, de comprar o presente que falta, marcar a passagem para rumar a outros extremos geográficos, encontrar o pedreiro, encanador, esquecer a dor nas costas e correr.  Correr até não mais encontrar um segundo do dia restante, nenhum raio de sol quando finda a jornada. E dizemos suspirando, principalmente se tem alguém ouvindo, que dia! como estou cansado! E quem não saiu, não correu, não andou? quem esperou por alguém que viesse ajudar a sair da cama? quem não encontrou caminhos fáceis para quem anda numa cadeira de rodas e precisou da ajuda de alguém para subir o degrau que limita o atrevimento do cadeirante? Seja como for, a vida é uma cigana de saia rodada que dança sob pedregulhos e espinhos e que, de vez em quando enrosca a barra num obstáculo. E mesmo que a música continue, é inevitável parar e tratar daquilo que se tornou empecilho. É essa dança de saia rodada que, quando muito agitada, descobre o que não se queria revelar - a necessidade de nunca parar, de estabelecer um modus operandi de ser, onde o movimento seja a base do equilíbrio. Não é assim tão fácil para quem convive com uma deficiência. Nessa condição, a dança requer uma nova coreografia, uma dose dupla de coragem que suplante aquilo que nos outros está presente tão gratuitamente. Nessa condição os desafios são sempre piores, mas eis que entre tantos sujeitos, surge alguém que vê na condição dos que não andam, motivos para a prática da generosidade! Neste 20 de dezembro Maria Januário ganhou um presente que foi um convite a  enxergarmos de novo o amor e a compaixão entre os seres humanos. Ganhou um gesto que nos estimula a acreditar que o mundo pode ser bom e as pessoas salvas do abismo que nos espreita sorrateiro, alimentado pelo individualismo e a ganância. Maria ganhou uma cadeira de rodas novinha em folha, graças a um leilão on line, feito por uma jovem de coração lindo e generoso. Ela contou com a contribuição de amigos que são feitos de afeto e fiéis aos gestos que exigem a amizade verdadeira. Tudo que mais lhe agradava entre "suas coisas", foi colocado à venda no leilão e todos sabiam para quê, isso legitimou ainda mais o gesto de quem se dispôs a comprar algo. E assim é que somos feitos, refeitos, desfeitos...reconstruímos constantemente o nós, em busca de outras grandezas largadas e esquecidas lá no começo, onde ainda não tínhamos sido contaminados pela ânsia do TER, onde o nosso umbigo não era tão enxergado. Com a cadeira nova Maria vai poder ir à missa, ao supermercado, ao banco... vai experimentar as agruras do deslocamento de um cadeirante numa cidade que alija a existência dele... e bem ou mal, vai poder sentir também a solidão das multidões.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Natal é época que convida ao amor


O espírito do Natal convida ao encontro, ao estar "com", a fazer-se em alegria despretensiosa onde a vida em um ano, normalmente é passada a limpo, avaliada nos seus prós e contras, e dão espaço a sonhos de projetos outros, que fazem dela (a vida) ser um movimento dialético, um eterno recomeço. Com os idosos é tão mais interessante esse resultado. Não há harmonia nos passos e gestos, cada um a seu modo usufrui do encontro como uma novidade extra, distante de sua rotina de casa, idas à farmácia e ao centro de saúde, preocupação com a família, netos, filhos e com a saúde. Cada um com seu ritmo, suas crenças, seus receios, suas esperanças de viver melhor, com qualidade. Eis a palavra! Qualidade!  O encontro hoje serviu para um monte de coisas, mas essencialmente, para reafirmar a certeza de que podemos seguir por um caminho onde as pessoas não devem ser tratadas apenas com técnicas marcadas pelo dualismo cartesiano da pura e simples exatidão onde a doença e a saúde estão refugiadas. Fizemos algazarra, dançamos, falamos de coisas sérias e resgatamos brincadeiras da infância, tudo perfeito. E fizemos isso sem nenhum medo de romper com uma sintonia que teima em fragmentar nossas práticas de saúde. Fugimos da correria onde tudo converge natural e perigosamente para ações individualizadas onde cada um faz a sua parte.Quem irá reunir os mil fragmentos espalhados do que foi esfacelado num mesmo indivíduo que contemporizamos no encontro solitário dos consultórios? É esse nível de experiência do fazer em saúde que alimenta e mata a fome de uma carência própria  e que satisfaz o ser humano porque o aproxima de uma maior possibilidade de inteireza. No espaço privilegiado que alberga o grupo desponta a necessidade que todo ser humano tem, de viver coletivamente, de saber-se no outro aquilo não viu ainda em si, porque espelhos não avaliam antes de refletir a imagem, mas encontramos nos pares o olhar que nos remete ao encontro conosco também. Lemos nas histórias alheias os desejos que nos assemelha, aquilo que não experimentamos, mas que gostaríamos; nos identificamos numa fome de saber/sentir o ainda não alcançado, naquilo que está no plano do desejo e que muitas vezes, agoniza em nossa lógica linear. É justamente o fato de aceitar essa angústia como parte da condição humana que permite ao homem desenvolver-se como um ser ético; para tanto, deverá estar o tempo todo construindo o seu processo de autonomia. É o que afirma Nelson Levy (1991), preocupado em conceituar o homem como ser ao mesmo tempo desejante e ético.
A Educação em Saúde é mecanismo importante para o trabalho em grupo, que usa ferramentas que demandam ao profissional de saúde habilidades para desenvolver tarefas cujas exigências estão no campo não só das ciências biológicas e da semiologia - não cabe explicar sintomas, causas, pioras e melhoras. Exige uma maturidade para falar das relações sociais, requer aproximação com a psicologia, com as artes e com práticas alternativas, que fogem ao dia-a-dia do serviço de saúde. Ainda precisa muito ser materializada no discurso institucional que dialoga e exige até, das equipes, o desenvolvimento dessas práticas, mas no fundo, não vê o quanto de necessidade e apoio, ela carece para se tornar ação.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Calçada Amiga: A percepção da violência sob a ótica da comunidade



A ideia da roda de conversa é proporcionar a troca de pensamentos, opiniões, visões e leitura que  fazemos do mundo à nossa volta. É acima de tudo a busca por convergência mesmo diante do que se mostra infinitamente contraditório. O encontro hoje com a comunidade, descortinou a angústia que persegue o mundo contemporâneo: a Violência. E o cenário, curiosamente, era uma igreja. As palavras às vezes calam algo que permanece tão mais escondido dentro de nós, mas a fala do outro trás à tona aquilo que tentamos segurar, com medo de nos expor, com receio de nos revelar. Assistiu-se a um colóquio onde a violência foi triturada em pedacinhos para cada um explicar, segundo suas próprias convicções, suas causas e consequências, seus resultados e suas soluções. É complexo o manejo do tema em uma comunidade que experimenta a sensação de estar largada no mundo, desfiliada das políticas sociais que protejam os indivíduos, órfãos de governos que não olham e agem para os domínios dos cidadãos  "sócios" de uma cidade, onde nela constroem seus sonhos de vida. O embate, se assim pode-se falar quando em roda, trás também uma percepção das responsabilidades não só coletivas, mas no plano individual, nas transformações que ocorrem na estrutura e dinâmica das famílias - o jeito de lidar com os conflitos, desejos e perspectivas dos filhos jovens, a educação e edificação de valores. Houve quem defendeu a palmada como modo de conseguir deter tanta liberdade. Houve quem manifestou descrença pelo antagonismo liberdade X responsabilidade. Houve quem desejou o retorno da ditadura como meio de frear a decadência da sociedade, como medida derradeira de evitar sua destruição. Houve os que apontaram o dedo em direção a uma ferida autofágica- a estreita relação entre a violência e as drogas. Que construção pretende uma comunidade que não se mobiliza coletivamente em torno dos seus interesses? que não dialoga de maneira propositiva e com implicação de atos para o seu crescimento, seu cuidado e sua proteção? Como percorrer este campo íngreme e difícil de caminhar onde moram os desafios de se superar a negação ao afeto, ao carinho e ao amor, tão necessários para não se encontrar justificativas e benefícios em castigos físicos na educação de crianças e jovens. Para encontrar resultados que deem conta de sua composição futura como SER não desprovido de proteção? Como essa comunidade pode combinar seus desejos coletivos e realizá-los se não praticar o exercício do diálogo, da grupalidade e da generosidade de construir juntos uma maneira de convocar o poder público para retomar seu papel social, exigir dele também, esse cuidado e essa proteção que deve ser disponibilizada para todos? Não há nenhum segredo em viver, tudo recomeça agora, a partir deste instante. Aquilo que não foi construído poderá vir a ser, depende muito de como vamos nos mover, qual direção seguir, para que lado olhar e que passos essa comunidade almeja trilhar. O entendimento da violência como fator desestruturante das relações sociais passa também pela compreensão de que ela (a violência) funciona como um último recurso que tenta estabelecer o que é justo segundo a ótica de quem agride. Em geral, a violência tem uma motivação corretiva que tenta consertar o que o diálogo não foi capaz de solucionar. Portanto, sempre que houver violência é porque alguma coisa já estava errada - e é essa coisa que precisa de maiores cuidados. É essa coisa errada que precisa ser corrigida para diminuirmos os tipos de violências. São esses encontros que vão se constituindo em espaços de inúmeras possibilidades de se fazer cidadãos livres e conscientes do seu papel no mundo de interesses comuns. É essa a magia que a roda de conversa proporciona, e que tem no PESA o nome singular de CALÇADA AMIGA. Vamos teimando porque pode dar muito certo.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Calçadas Amigas: pequeno relato de experiência





O ano era 2005, o mês não lembro agora, mas não importa. Estávamos sentados na calçada. Uma roda de conversa se formava, cada um trazendo um banco ou cadeira para um encontro na rua, numa tarde agradável. Após a acolhida de todos, começou-se o debate e os mais diversos problemas da rua, do bairro e da cidade iam sendo despejados na roda, até que uma senhora revelou algo inesperado: "Tenho vergonha de dizer onde eu moro, porque tem um lixão na entrada da rua e essa referência me deixa envergonhada". Questionou-se então, se mais alguém, que morava na mesma rua também sentia isso. Qual não foi a surpresa, muitos compartilharam do mesmo sentimento, e alguns que não enxergavam aquilo como problema, passaram a olhar a situação com outros olhos. A partir deste momento, tivemos em público uma verdadeira aula de cidadania exposta e carente em encontrar ecos nas suas reivindicações e desejos coletivos e se fez então algo que é a essência do pensamento "paulofreiriano" - a mobilização das pessoas pelo viés da compreensão de que "não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão". Todos falaram, e falaram muito, e teceram idéias, analisaram o fato, suas causas e consequências, de quem seria a responsabilidade, o que poderia ser feito, quem iria fazer, quantos poderiam participar, que ações seriam necessárias para equacionar o problema, quem, verdadeiramente, estaria disposto a se implicar. Formaram-se comissões para cuidar de cada uma das etapas. Convocaram-se os órgãos públicos de interesse, chamou-se para um encontro entes privados donos do terreno na entrada da rua, mostrou-se a reivindicação da comunidade, buscou-se envolver as escolas e outros sujeitos para "engrossar o caldo" da ação, que exigia uma mudança de postura dos moradores na sua relação com o lixo. Fez-se um trabalho de recuperação no local, retirou-se as caçambas de lixo, em caminhada foi-se em cada domicílio da rua para explicar a necessidade de não mais colocar o lixo na esquina e mantê-la livre da poluição.No dia marcado para a transformação, onde antes havia o lixo plantou-se flores, árvores, coqueiros, fez-se teatro e poemas para estimular no cidadão á ética ecológica, aquela que não cabe em si sozinha, não cabe sozinha em ninguém, todos têm que possuí-la, sob o risco de ninguém escapar no fim. Eis um relato da experiência do que são as CALÇADAS AMIGAS, importante ferramenta de utilização para o trabalho de EDUCAÇÃO SANITÁRIA E AMBIENTAL a que se propõe o PESA ( sem maiores pretensões de citar nomes de pessoas ou órgãos - eles existem, mas só são importantes quando citados na pessoa do NÓS). 
E  é impossível encontrar verdade maior que possa ser traduzida nas palavras de Paulo Freire assim por ele pronunciadas: "Se, na verdade, não estou no mundo para simplesmente a ele me adaptar, mas para transformá-lo; se não é possível mudá-lo sem um certo sonho ou projeto de mundo, devo usar toda possibilidade que tenha para não apenas falar de minha utopia, mas participar de práticas com ela coerentes." Então, é desse jeito que o PESA se revela, como programa local num bairro periférico de uma cidade linda, mas que esconde lá (nas bordas dessa cidade), seres desejantes de um mundo melhor, uma vida melhor...uma rua melhor.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

MEU NOME NÃO É CLEIDE, MAS ME CHAMAM CLEIDE


"Estou me sentindo doente, mas vou melhorar. Não preciso de internamento, só preciso que me respeitem. Eu queria que respeitassem o que eu sinto. Eu tomo  banho, eu me alimento, eu tomo meus remédios, eu durmo. Eu vou me curar, se Deus quiser, e ele quer." O que há de errado nesse desejo? Onde está a completa insanidade? Onde está a  necessidade de hospitalização? O chamado urgente para uma visita domiciliar, fez com que parte da equipe de saúde "perdesse" metade do seu tempo para o almoço nesse dia. Fomos ver na expectativa de algo muito sério e muito grave, pois o que se pedia era pungente: "Venham rápido ela precisa de ajuda, a família já não sabe mais o que fazer". E a gente treme na base quando a questão está na ordem da Doença Mental. Há tantas coisas implicadas que afetam o enfrentamento dessa temática! É tão angustiante quando temos que nos debruçar sobre essas patologias.! Afinal, qual o limite e a  responsabilidade da ESF diante desses casos? Como mobilizar saberes, atitudes e práticas que deem conta de amparar todas essas necessidades? E como ignorar que esses são diagnósticos que compõem a terceira morbidade entre o perfil epidemiológico da área? Não é algo que  possa ser deixado de ver. A narrativa do cotidiano de familiares foi o que pareceu mais preocupante. Na tentativa de superação, buscam os profissionais de saúde,  e o encontro é cheio de aflição. Eles bradam a inconformidade com o rompimento, com o isolamento afetivo e social, do sujeito, pelo qual ainda que, aparentemente rude, tem forte ligação parental e afetiva. Todos dizem: "Só queremos o seu bem. Queremos lhe  ver bem. Queremos que você fique boa". E dizem isso exasperadamente. Num tom que beira o precipício. A tensão desses encontros (ou desencontros) revelam uma necessidade enorme de recuperação, não só do paciente. Obriga a equipe a repensar o cuidado com o olhar focado na família. Os familiares precisam de ajuda, e muita! Foi o que vimos. Curiosamente, durante a visita a paciente era o ser mais calmo entre todos ali presentes. Ela e o médico. Ambos ouviram num silêncio quase metafísico os debates nervosos da família, todos dando receitas para a cura, ao mesmo tempo. Um mergulho na turbulência de dúvidas e conflitos. No fundo, não há aceitação fácil para lidar com o drama cotidiano de um doente mental, tanto mais quando a doença, está atingindo muito a esfera orgânica e interferindo no modo de se portar no dia a dia. Sim, porque diante deles está alguém que fala, come, responde, é jovem, não tem doença que exija ficar na cama o dia todo...e o que enxergam é a falta de coragem e ânimo, do não desejo de melhora...É desesperador ouvir tanto julgamento. Evidentemente que as dificuldades, os problemas dessa família, e seus dilemas, exigirão da equipe uma aproximação que a coloca para o centro dessa experiência, não podendo negar a infalibilidade e a necessidade de enxergar para além da doença, a história e a existência de cada um. Não há nada mais humano do que temer ao resultado disso. Nunca mais tinha ouvido nada tão humano quanto o que foi pedido por Cleide. E seus dois únicos sorrisos dirigidos a nós, durante a visita,  atingiram em cheio nossa impotência. Não só eles...nós também vamos precisar muito de ajuda.
De repente uma necessidade de ouvir um blues.

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Tenda do Conto em Cidade Nova: Encontro lindo, cheio de emoção.


E elas chegaram com aquelas malas de rodinhas. Alguém perguntou: vão viajar? Respondi: Sim, vamos todos viajar. Vamos mergulhar numa experiência que tem um encanto assombroso e tira de nós lembranças empanadas...longe na memória... encobertas pelo tempo. Todos foram buscando acomodar-se e impossível foi não perceber os olhos curiosos debruçarem-se sobre os objetos que estavam sendo espalhados sobre a mesa. Na expressão do rosto, todo espanto e curiosidade. Espalharam-se pétalas de buganvileas sob a mesa, malas customizadas de vários tamanhos no chão, penduraram bonecas de pano e urupemas numa colcha de fuxico, toda sorte  de objetos carregados de imensa simbologia e significados no imaginário daqueles inúmeros pares de olhos que curtiam a novidade do encontro naquele dia. Típico encontro com arquétipos. E a cadeira de balanço? Ah! eis aí o objeto mais intrigante. Coberta com uma manta, cheia de almofadas, pronta para balançar a quem se submetesse testar sua  identificação e conquistar a coragem de expor a autonomia pessoal, a própria liberdade interior e acima de tudo a autocompreensão dos seus processos existenciais. A mensagem pronunciada por cada uma das falas revela, o que temos de nós em forma de dor, saudade, prazer ou alegria. Inegável quanto de  desconsolo humano carregamos, tantas vezes anônimo e cotidiano, diante das perdas irreparáveis, ausência de pessoas amadas, da saúde fragilizada, da felicidade que às vezes se faz tão distante, do trabalho que nos sucumbe e que pode ser mais motivo de desamparo em algumas ocasiões. Quem consolará a todas essas intempéries dispersas nas nossas memórias até os dias de hoje?. Trazê-las à tona causa tanta reviravolta interior! Como são preciosas as pessoas quando se aproximam com ternura das suas mais duras vivências! E há um maravilhoso  projeto de amor embutido em cada uma dessas vidas que conseguiram emergir e chegar até aqui, para lembrar que no fim tudo que se viveu de mais doloroso não minimizou o desejo e a esperança de ser feliz. Percorrer o caminho da memória traz de volta a percepção da totalidade e junta a realidade que em nossa história de vida se fez em mil pedaços. E isso é tão bom para percebermos que,  até quando ainda formos nós, seremos sempre o complexo e magnífico testemunho das nossas idéias e sonhos. A Tenda do Conto nos convida a  passar por cima do nosso desamparo pessoal e prestar atenção em quem está do nosso lado, acolher suas lágrimas, suas dores e dissabores; nos estimula a curtir os mesmos sorrisos,  alegrias e lembranças boas; compartilhar no fim, abraços e afetos. Não há nenhuma rigidez ou ordem predestinada, somente ouvir em silêncio, substrato necessário para se consuma do outro aquilo que o milagre da TENDA pode dar.