domingo, 5 de janeiro de 2014

A generosidade se faz em atos




























A solidão que há em nós não é só medida pela falta do outro. Há tanta solidão no vozerio das ruas, nos corredores da repartição, nas filas onde nos colocamos prostrados e nos sentimos árvores criando raízes, que esquecemos de lembrar dos seres que nunca experimentam uma solidão assim - em meio à multidão. Para alguns a restrição e os limites são mais vorazes. Por acaso, em algum momento da vida, você já se imaginou sem poder andar? Por algum lampejo perceptivo já tentou pensar como é ir de um lado a outro da cidade sem o uso das próprias pernas? Desconfio que não. Não somos assim tão afeitos a nos colocar, ainda que extemporaneamente, na condição do outro; de experimentar ao menos em tese, as vicissitudes de quem não anda. Corremos feito loucos, atirados como lobos na borrasca das nossas urgências de pagar o cartão de crédito, de comprar o presente que falta, marcar a passagem para rumar a outros extremos geográficos, encontrar o pedreiro, encanador, esquecer a dor nas costas e correr.  Correr até não mais encontrar um segundo do dia restante, nenhum raio de sol quando finda a jornada. E dizemos suspirando, principalmente se tem alguém ouvindo, que dia! como estou cansado! E quem não saiu, não correu, não andou? quem esperou por alguém que viesse ajudar a sair da cama? quem não encontrou caminhos fáceis para quem anda numa cadeira de rodas e precisou da ajuda de alguém para subir o degrau que limita o atrevimento do cadeirante? Seja como for, a vida é uma cigana de saia rodada que dança sob pedregulhos e espinhos e que, de vez em quando enrosca a barra num obstáculo. E mesmo que a música continue, é inevitável parar e tratar daquilo que se tornou empecilho. É essa dança de saia rodada que, quando muito agitada, descobre o que não se queria revelar - a necessidade de nunca parar, de estabelecer um modus operandi de ser, onde o movimento seja a base do equilíbrio. Não é assim tão fácil para quem convive com uma deficiência. Nessa condição, a dança requer uma nova coreografia, uma dose dupla de coragem que suplante aquilo que nos outros está presente tão gratuitamente. Nessa condição os desafios são sempre piores, mas eis que entre tantos sujeitos, surge alguém que vê na condição dos que não andam, motivos para a prática da generosidade! Neste 20 de dezembro Maria Januário ganhou um presente que foi um convite a  enxergarmos de novo o amor e a compaixão entre os seres humanos. Ganhou um gesto que nos estimula a acreditar que o mundo pode ser bom e as pessoas salvas do abismo que nos espreita sorrateiro, alimentado pelo individualismo e a ganância. Maria ganhou uma cadeira de rodas novinha em folha, graças a um leilão on line, feito por uma jovem de coração lindo e generoso. Ela contou com a contribuição de amigos que são feitos de afeto e fiéis aos gestos que exigem a amizade verdadeira. Tudo que mais lhe agradava entre "suas coisas", foi colocado à venda no leilão e todos sabiam para quê, isso legitimou ainda mais o gesto de quem se dispôs a comprar algo. E assim é que somos feitos, refeitos, desfeitos...reconstruímos constantemente o nós, em busca de outras grandezas largadas e esquecidas lá no começo, onde ainda não tínhamos sido contaminados pela ânsia do TER, onde o nosso umbigo não era tão enxergado. Com a cadeira nova Maria vai poder ir à missa, ao supermercado, ao banco... vai experimentar as agruras do deslocamento de um cadeirante numa cidade que alija a existência dele... e bem ou mal, vai poder sentir também a solidão das multidões.